Algumas pessoas precisam de eventos traumáticos para perceberem que estão vivendo uma vida no piloto automático. Outras percebem e decidem pela mudança sutilmente, aos poucos. E como nós sabemos, e quase nunca conseguimos expressar em palavras, as motos e o motociclismo, na maior parte do tempo, transformam as pessoas. Basta recorrer às inúmeras histórias de grandes viagens e aventuras sobre duas rodas que resultaram em mudanças radicais de vida e de percepção sobre o mundo e as coisas. Mas não é preciso dar à volta ao mundo quando se é possível começar dentro de nós mesmos. O que é, talvez, a viagem mais longa e mais difícil. Renato Frateschi fez esta viagem e conseguiu chegar a um destino que lhe trouxe paz de espírito e a realização de trabalhar com sua paixão e a paixão das pessoas pelas motocicletas.
Renato Frateschi me recebeu elétrico em sua oficina. Era para ser uma pequena visita para ajustar algumas coisinhas na minha motocicleta. Mas o que se sucedeu foi uma belíssima conversa e uma boa história para ouvir. Aos 32 anos, gesticulando muito e falando sem parar, com o brilho nos olhos claros que a gente consegue perceber na hora que é um brilho de contentamento, quer mostrar, com todo o orgulho que lhe é de direito, a sua oficina, suas conquistas e sua história. Entre muito café e cigarros lícitos acaba respondendo quase todas as minhas perguntas sem que eu tenha de abrir a boca. Pareceu que leu minha mente.
Renato tem a oficina há pouco tempo. Ela foi resultado de um longo processo que começou quando seu pai faleceu. Na ocasião se viu, de certa forma, responsável pela sua família. Irmão mais velho de duas irmãs mais novas que ele. Colocou na cabeça que iria estudar e trabalhar para chegar no que costumamos chamar de “topo” sem termos uma ideia clara do que isso signifique e, dessa forma, ajudar sua família a se manter. E assim o fez.
Foi parar em uma grande corporação, cheio de responsabilidades, pompa e circunstância e, para os padrões brasileiros, um belíssimo salário na conta no final do mês. Mas em algum momento Renato percebeu que aquilo o estava afastando de tudo o que ele mais gostava, inclusive da própria família (acredito que muitos de nós conhecemos muito bem essa história). Nos últimos dois anos, antes de jogar tudo para o alto e abrir a oficina, sofria de uma gastrite nervosa, indo de um médico a outro e recorrendo inclusive a terapias alternativas. Não dormia, não relaxava e, no último ano, em uma posição que lhe pareceu muito desconfortável dentro do lugar onde trabalhava, tinha de decidir o destino de outras pessoas sem pestanejar. Foi aí onde a insatisfação e vazio chegou no seu auge.
Durante todo esse período conturbado, foi investindo em ferramental, estudando e montando sua própria motocicleta no anexo de sua casa (onde hoje é sua organizadíssima e equipada oficina). Segundo ele, se trancava na oficina durante o sábado e o domingo inteiros e aquilo era uma terapia. Começou a entender que poderia fazer daquilo um meio de vida que, além de lhe dar o sustento, seria a realização do sonho de meio mundo: o de se trabalhar com o que se gosta. Começou a fazer as contas, colocar tudo no papel, entender que obviamente sua renda cairia brutalmente e que teria de ter um completo e detalhado planejamento.
Formado em administração, curioso e interessado, frequentou alguns lugares e oficinas para entender um pouco mais do meio da customização. O que viu, e que todos nós sabemos, o deixou de cabelos em pé. Muitos projetos e motos interessantes e bem feitos mas, em todos os outros aspectos como organização, gerenciamento de projeto, processos e outros detalhes importantes, era um completo desastre. Nesse ponto Renato viu que poderia ter um diferencial imenso em relação ao mercado de customizadas que existe hoje: eficiência em termos de prazo e planejamento.
Sem medo, extremamente metódico e detalhista, organizou tudo e pediu demissão. Terminou sua primeira motocicleta, para ele mesmo: uma CB500 dois cilindros cafe racer cuja construção primorosa e de muito bom gosto começou a chamar a atenção em todos os lugares e grupos de customização pela internet afora. Naquele momento, talvez sem perceber, a propaganda do seu trabalho começou a acontecer espontaneamente e, dessa forma, foi natural que muitas pessoas começassem a entrar em contato. De repente, viu-se com demanda de trabalho sem mal ter aberto a oficina. Com um plano de ação claro e um plano de negócios na mão, traçou uma missão: construir objetos de paixão e desejo sem todo o sofrimento e dor de cabeça que a maioria das pessoas tem com um trabalho de customização.
Seu foco é entregar todas as motos, no máximo, em um prazo de 90 dias e ele tem se policiado e organizado para isso de todas as formas utilizando tudo o que aprendeu no mundo corporativo referente a organização, planejamento e gerenciamento.
“Eu acho impensável as motos ficaram um, dois anos dentro de uma oficina de customização. Isso não é uma relação consumidor/prestador de serviço saudável e desejável. É quase um sequestro onde chega-se em um ponto sem volta que o cliente vira um refém do profissional. Não é normal achar isso normal. Em termos de prestação de serviços é uma afronta ao bom senso. Imprevistos acontecem, claro. Mas é preciso saber se planejar para eles também. É impossível, e trágico, que alguém que trabalhe há anos com uma coisa continue cometendo os mesmos erros sistematicamente.”
Com uma cabeça muito centrada e uma espiritualidade latente (Renato fala o tempo inteiro nisso, em boas vibrações, não exatamente religião) o que ele se deu conta é que a oficina foi apenas um pano de fundo para algo muito maior e libertador que aconteceu dentro dele. Ele entendeu que não precisava de um salário gordo e comprar coisas sem parar como um tipo de compensação para a falta de tempo e, obviamente, vida que vale a pena ser vivida. E entendeu que dar um ou mais passos para trás não significa perder algo ou falhar. Entendeu que, se as coisas derem errado e não saírem exatamente como ele imagina, não há vergonha alguma em, digamos, baixar o padrão de vida para se estruturar novamente. Entendeu que não existe um “topo” e que nossa vida aqui é muito curta para deixarmos de fazer o que queremos ou nos arrependermos de algo que nunca tentamos.
O mais interessante do processo todo é que Renato se empolga além das motocicletas. Ele deixa claro que o que move ele de verdade é essa coisa de trabalhar com o sonho das pessoas de ter uma motocicleta única.
“Não é a moto, são as pessoas. Assim como o motociclismo”. Tanto o é que faz questão de dizer que não quer “assinar” suas motos. Nada contra quem o faz, afinal, todo mundo que produz algo, naturalmente coloca seu nome mas ele emenda: “A moto é o sonho da pessoa, é dela. É uma coisa íntima. Meu nome ali naquele sonho de alguém, pra mim, não faz o mínimo sentido”.
Com a demanda inicial que o surpreendeu, chamou um amigo para fazer o trabalho de mecânica:
“Eu tenho a humildade de entender que não sei tudo, mas sei que dá para aprender tudo no seu tempo e que posso pedir ajuda pra quem for quando eu precisar. Por isso tenho o Victor aqui. Ele sabe muito mais do que eu e é super competente. É o tipo de mecânico que faz as coisas consultando o manual e dando o aperto no torquímetro de cada parafuso exatamente como consta no manual da moto. Para que eu vou me meter a fazer as coisas que alguém faz muito melhor do que eu?”
Tento fazer uma provocação comentando que existe um consenso no ramo, de certa forma protecionista, que diz que os customizadores são artistas e, como tal, são criativos e devem trabalhar no próprio ritmo, sem pressão, sem prazos e pergunto o que ele acha disso. A resposta vem como um raio e um trovão de tão clara e em alto em bom som:
“Essa coisa de artista não existe. Artista é outra coisa. Talvez você queria ser um customizador cujo foco é exposição e prêmios mas mesmo assim existem prazos e as coisas tem um tempo para serem concluídas. Se você quer ser um customizador pro mercado, você não é um artista, você é um prestador de serviços com todas as obrigações e responsabilidades que isso implica. Qualquer um faz motos ou qualquer outra coisa em qualquer outro ramo de atividade. Qualquer um. Basta estudo, dedicação e experiência. Fazer motos não faz de ninguém um artista ou especial o bastante para ser menos cobrado das mesmíssimas responsabilidades que tem um padeiro ou pedreiro, por exemplo.”
Pelo que dá pra perceber pelo trabalho, pela organização, pelo senso de responsabilidade e pela vontade de querer fazer diferente de Renato Frateschi, dá pra dizer que, se seu plano continuar funcionando como está, com certeza vai se transformar em um profissional exemplar que vai começar a dar muita dor de cabeça nos que estão acostumados a realidade atual onde, tirando a parte técnica de fabricar e montar a moto, todo o resto (que é importantíssimo) está numa zona cinza e nebulosa que ninguém consegue compreender direito e ninguém fala a respeito.
Torcemos para que dê muito certo.
Serviço
Frateschi Garage
Travessa Chady Muradi, 155 – Butantã – São Paulo – SP
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Telefone: (11) 95289-1000
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