A maioria das pessoas que aglomeram-se e acotovelam-se nas grandes cidades, em uma rotina diária muitas vezes extenuante, nutrem um sentimento comum: o desejo de, algum dia, saírem definitivamente da rotina massacrante de um emprego dito normal e lançarem-se na aventura de cultivar uma paixão que talvez possa se transformar em um meio de vida. Flavio Vianna, publicitário paulistano, já trilhou boa parte do caminho e sonha com um futuro que vislumbrou em uma visita ao Japão, resultado de um rompante de ousadia e, provavelmente, lucidez.
Conheça a história de alguém que reuniu coragem para passar por uma experiência de vida que poucos teriam sequer a iniciativa de pensar a respeito. Flavio, com pouco planejamento e muita vontade, ofereceu-se para trabalhar como aprendiz de um dos mais respeitados customizadores da atualidade, passou um mês no Japão, voltou para sua cidade e construiu com dedicação e muita criatividade, nos mínimos detalhes, uma motocicleta que foge do lugar comum, assim como aprendeu com seu mestre em sua estadia na terra do sol nascente.
Antes da ideia maluca de oferecer-se para ir ao Japão e trabalhar para um profissional que admirava, Flavio trilhou o caminho natural para um cidadão de uma grande metrópole da América do Sul. Como herdamos de bom grado e goela abaixo o way of life norte americano, nada mais natural que começar com uma Harley Davidson, objeto de desejo de muita gente por aqui. Foi com uma Harley Davidson Sportster 883 que o homem resolveu que queria começar a esboçar seus projetos e meter a mão na massa. Estética e tecnicamente, o resultado ficou ótimo, de acordo com a cartilha e o figurino que vemos nas ruas por aí. Mas Flavio queria mais, queria algo diferente.

Foi então que teve a oportunidade de restaurar por completo uma Yamaha RD250 1974. No processo, começou a sentir-se muito incomodado pelo fato de depender de tanta gente para colocar para rodar novamente uma motocicleta já de idade avançada. Também lhe perturbava o fato de não ter conhecimento e técnica suficiente para dominar absolutamente todo o processo. Passando por todas as dificuldades envolvidas na restauração, um sentimento cada vez maior de querer aprender e não depender de tanta gente foi ficando latente.

Flavio então decidiu que iria se dedicar e estudar. Começou a fazer cursos de todos os tipos atrás de conhecimento com uma única ideia fixa na cabeça: fazer uma moto inteira com as próprias mãos.



Foi quando se deparou com uma moto que praticamente o enfeitiçou. Era um BMW R Nine T construída pelo japonês Kaichiroh Kurosu, fundador da respeitada Cherry’s Company em Tóquio. A motocicleta foi a gota que fez o copo transbordar. Era diferente de tudo o que ele havia visto e era justamente aquilo o que ele gostaria de fazer como customizador. Não pensou duas vezes, bateu um papo com a esposa e contou seus planos. Ia fazer o que fosse possível para ir ao Japão trabalhar e aprender com Kaichiroh. Bastaram algumas mensagens trocadas pelas redes sociais, contando de suas intenções ao próprio Kaichiroh, que Flavio recebeu uma japonesa e reservada resposta: “Tudo bem. Me diga quando pretende vir.”. Passadas a descrença e euforia inicial, Flavio fez as contas, juntou as reservas e voou para Tóquio com a intenção de ficar duas semanas. Praticamente no mesmo dia já estava de macacão (todos na oficina usavam macacões), dentro da rotina da oficina e imerso em uma cultura diferente de tudo o que sabia sobre não só customização mas também sobre costumes e sociedade. Todos sabemos que o Japão é outro mundo mas Flavio viu e sentiu na pele a máxima de que no Japão não existe propriamente o indivíduo, a estrela, o bonzão, e sim a coletividade, assim como o respeito e igualdade no seu sentido mais literal e correto.





Flavio deixou bem claro a Kaichiroh que era um entusiasta e iniciante mas que estava completamente disposto a aprender. Fez coisas sozinho com a permissão de seu mestre, repetiu processos duas, três quatro vezes, inutilizou chapas de aço, aprendeu e também se viu com um profissional dedicado e experiente muito paciente ao seu lado, lhe ensinando. Conheceu a escola de customização japonesa, completamente diferente do que conhecemos. Outra estética, outro jeito de se comportar e trabalhar.




Em sua estada no Japão Flavio pode ver de perto um dos grandes projetos de Kaichiroh, uma Harley Davidson Street 750 transformada completamente e além de tudo turbinada! A motocicleta foi praticamente inteira refeita, toda dentro da oficina de Kaichiroh, em todos os detalhes onde o que sobrou foi apenas o motor. Veja mais fotos da moto no BikeExif.


A moto foi parar em um grande grupo brasileiro sobre customização pelas mãos de Flavio e a polêmica se incendiou na rede social. Muitos não entenderam a proposta e não tiveram visão o suficiente para enxergar o trabalho primoroso de modificação e técnica. Mas Flavio rebateu “Se um dia eu tiver capacidade para fazer esse trabalho incrível, estarei realizado”. E, de fato, os projetos de Kaichiroh não são exatamente fáceis de agradar a todos. Além da escola japonesa, bastante diferente, há também uma excentricidade e necessidade em fazer algo diferente, que chame a atenção e cause impacto sem se prender a rótulos pré-definidos. Mas é justamente isso que faz de Kaichiroh um nome respeitado e celebrado no meio: a ousadia e a inovação.

As duas semanas viraram um mês e Flavio voltou para São Paulo leve. Do outro lado do mundo entendeu que dentro da oficina era onde o homem reservado, quieto e introspectivo sentia-se bem e realizado. Assim como seu mestre. A imagem da oficina onde, em um segundo piso era a morada de Kaichiroh, não lhe saia da cabeça. Pensava que um dia queria morar em cima de uma oficina, longe da loucura da capital paulistana e todos as suas falsas necessidades e vaidades e, para isso, tinha de começar por algum lugar. Depois de um justificável mau humor devido ao choque de realidade da volta à rotina, Flavio entendeu que tinha de começar por algum lugar. E na verdade não era um lugar mas sim uma moto. Finalmente sentiu-se preparado para fazer uma moto inteira com as próprias mãos. Para isso, chamou o amigo Fabio Matiolli. Fabio, com seu talento como arquiteto, foi fundamental nas decisões de pontos importantes do projeto, assim como foi primordial na concepção digital em CAD de todas as peças que seriam usinadas especialmente para a motocicleta, feitos por ele em CAD.
Até porque sabemos que é quase impossível fazer tudo sozinho mas a ideia era fazer o máximo possível assim como na escola japonesa onde, de fato, o costume é fazer praticamente todo o trabalho e depender muito pouco de compra de peças e contratação de serviços de terceiros, coisa muito comum na escola de customização atual.
Antes mesmo de começar seu projeto em terras brasileiras, Flavio teve uma agradável surpresa. Assim como sua experiência pessoal foi inestimável, ela também deixou marcas no Japão. A ida de Flavio abriu um precedente. Kaichiroh começou a procurar novos ajudantes e, pela primeira vez, por conta da experiência com Flavio, deixou claro que poderia ser qualquer pessoa de qualquer lugar do mundo.

Flavio então passou a dividir seu tempo meio a meio e, durante 7 meses, dedicou-se a um projeto desenhado por ele. Uma cafe racer inspirada nas Kawasaki de competição dos anos 70. A base escolhida foi uma esportiva de pequena cilindrada, a famosa Ninjinha 250. A escolha foi em parte baseada na dificuldade e exclusividade do projeto. Suas pesquisas lhe trouxeram pouquíssimos projetos utilizando a moto como base e o desafio de dar um ar retrô a uma moto moderna com plástico para todo lado era um apelo.


A primeira surpresa foi, ao retirar todas as carenagens e peças, perceber a dificuldade em retrabalhar o quadro da moto. Com paciência e com a ajuda de tubos de PVC o quadro foi refeito. Um dos maiores desafios foi acertar o tanque com suas linhas quadradas, remetendo aos tanques das antigas Kawasaki de competição. Uma estrutura de metal nas primeiras tentativas se mostrou falha e, ao fechar o tanque, tudo ficou meio torto. A solução foi um molde de madeira para guiar o fechamento da peça. A soldagem do tanque com suas linhas estreitas embaixo foi outro desafio. Foi preciso soldar com acetileno, à moda antiga, em função da minúscula área de soldagem.









Detalhista e meticuloso, Flavio deu atenção aos mínimos detalhes. Um preciosismo (não no sentido pejorativo) que mostra por que a moto chama tanta atenção. Uma chapa lisa fazendo as vezes de para-lama traseiro embaixo do banco ganhou ressaltos e pintura para não parecer tão espartana. Manoplas e banco combinaram com cintas de couro para segurar peças. Todas de uma mesma cor, mesmo que escondidas, e seguindo um padrão de espessura e presilhas de pressão. Um vistoso frasco de bebida se transformou em um reservatório de expansão de água.
A ideia geral era retirar todo e qualquer plástico e fabricar o máximo de peças possíveis, assim como aprendido no Japão. Diante disso uma das exigências de Flavio era de que não iria colocar nenhuma peça comprada genérica, comum ou de fabricação chinesa. Algumas peças vieram dos estados unidos, como lanterna e placa da kawasaki na lateral do tanque, e coisas como os piscas foram usinados e fabricados especialmente para a moto, do zero.





O grafismo discreto também tinha intenção de lembrar os grafismos das kawas antigas de competição e o verde Kawasaki está presente em pequenos fios na pintura, também feita por Flavio. A atenção ao detalhe fez toda a diferença na moto e a deixou com um aspecto único. Assim como os trabalhos de seu mestre, a moto de Flavio não é unanimidade para os mais puristas. Mas a ideia é a mesma: mostrar a beleza e a técnica em um projeto conceitual bem pensado, planejado e executado com esmero.
Tanta dedicação não demorou a mostrar resultados. A moto de Flavio foi vencedora do primeiro concurso de customização promovido por Motocultura mesmo concorrendo com projetos incríveis de excelentes customizadores. Foi parar no blog referência Garagem Cafe Racer (parceiro de Motocultura), eleita entre as melhores customizações de 2017 por sites especializados e rodou o mundo em publicações internacionais figurando, inclusive, em uma publicação russa. O último feito foi ser convidado a expor sua moto no Big Boy Toys, feira americana de inovação, estilo de vida e objetos de luxo.



A pequena história de Flavio, que você leu aqui resumidamente, e seu desejo de mudar de vida por conta de sua paixão foi contada no primeiro evento dedicado a contar boas histórias e difundir conhecimento promovido por Motocultura e Garagem Cafe Racer em São Paulo em maio de 2018. Um público de customizadores, entusiastas e aspirantes a customizadores pode ver de perto a Kawasaki de Flavio, se inspirar, perguntar e bater papo. Flavio deixou claro a todos que é perfeitamente possível fazer o que ele fez, mesmo que para isso seja preciso vender um bem ou juntar uma graninha. O dinheiro é efêmero e a experiência de transformação e conhecimento pela qual Flavio passou não tem preço e, com dedicação e vontade, pode ser realidade para todos.
A parte mais legal é que Flavio também trouxe do Japão, potencializado, algo que já era seu: dividir conhecimento, cultuar o respeito, a introspecção e a lição de Kaichiroh com sua postura low profile sem estrelismos ou pose, no melhor estilo japonês.
Motocultura e Garagem Cafe Racer não param por aqui. O próximo evento já tem data marcada (19 de junho) em São Paulo no bar do piloto Leandro Mello, o LM09, também empenhado na tarefa de contar boas histórias e difundir conhecimento valioso do mundo das duas rodas. Nossos leitores são convidados de honra para, mais uma vez, aprenderem e inspiraram-se.
O tema, dessa vez, é quase uma continuação do papo de Flavio. Vamos trazer um customizador que tem se destacado e que deu o segundo passo pelo qual Flavio planejou desde o começo. Quem vai nos contar sua trajetória, percalços, erros, acertos e planejamento é Renato Frateschi (leia a matéria completa), da Frateschi Garage, que largou um “bom” emprego em uma grande corporação e passou a trabalhar com motos nos fundos de sua casa e hoje vive plenamente o sonho de Flavio, Kaichiroh e tantos outros, mostrando que é possível.
Fotos: Divulgação, arquivo pessoal e André Santos